31 outubro 2011

A Lua que não dei...


“Compreendo os pais, e me encanto com eles, que desejariam dar o mundo de presente aos filhos.

E, no entanto, abomino os que, a cada fim de semana, dão tudo o que os filhos lhes pedem nos shoppings onde exercitam arremedos de paternidade.

E não há paradoxo nisso.

Dar o mundo é sentir-se um pouco como Deus, que é essa a condição de um pai.

Dar futilidades como barganha de amor é, penso eu, renunciar ao sagrado.

Volto a narrar, por me parecer apropriado à croniqueta, o que me aconteceu ao ser pai pela primeira vez.


Lá se vão, pois, 45 anos.

Deslumbrado de paixão, eu olhava a menina no berço, via-a sugando os seios da mãe, esperneando na banheira, dormindo como anjo de carne.

E, então, eu me prometia, prometendo-lhe: “Dar-lhe-ei o mundo, meu amor.”

E não lhe dei.

E foi o que me salvou do egoísmo, da tola pretensão e da estupidez de confundir valores materiais com morais e espirituais.

Não dei o mundo à minha filha, mas ela quis a Lua.

E não me esqueço de como ela pediu a Lua, há anos já tão distantes.

Eu a carregava nos braços, pequenina e apenas balbuciante, andando na calçada de nosso quarteirão, em tempos mais amenos, quando as pessoas conversavam às portas das casas.

Com ela junto ao peito, sentia-me o mais feliz homem do mundo, andando, cantarolando cantigas de ninar em plena calçada.

Pois é a plenitude da felicidade um homem jovem poder carregar um filho como se acariciando as próprias entranhas.

Minha filha era eu, e eu era ela.

Um pai é, sim, um pequeno Deus, o criador.

E seu filho, a criatura bem amada.

E foi, então, que conheci a impotência e os limites humanos.


Pois a filhinha a quem eu prometera o mundo ergueu os bracinhos para o alto e começou a quase gritar, assanhada, deslumbrada: “Dá, dá, dá...”

Ela descobrira a Lua e a queria para si, como ursinho de pelúcia, uma luminosa bola de brincar.

Diante da magia do céu enfeitado de estrelas e de luar, minha filha me pediu a Lua e eu não lhe pude dar.

A certeza de meus limites permitiu, porém, criar um pacto entre pai e filhos: se eles quisessem o impossível, fossem em busca dele.

Eu lhes dera a vida, asas de voar, diretrizes, crença no amor e, portanto, estímulo aos grandes sonhos.


E o sonho da primogênita começou a acontecer, num simbolismo que, ainda hoje, me amolece o coração.

Pois, ainda adolescente, lá se foi ela embora, querendo estudar no exterior.

Vi-a embarcar, a alma sangrando-me de saudade, a voz profética de Kalil Gibran em sussurros de consolo:

“Vossos filhos não são vossos filhos, mas são os filhos e as filhas da ânsia da vida por si mesma.

Eles vêm através de vós, mas não de vós.

E embora vivam convosco, não vos pertencem.

Vós sois os arcos dos quais vossos filhos são arremessados como flechas vivas.”

Foi o que vivi, quando o avião descolou, minha criança a bordo.

No céu, havia uma Lua enorme, imensa.

A certeza da separação foi dilacerante.

Minha filha fôra buscar a Lua que eu não lhe dera.


E eu precisava conviver com a coerência do que transmitira aos filhos: “O lar não é o lugar de se ficar, mas para onde voltar.”

Que os filhos sejam preparados para irem-se, com a certeza de ter para onde voltar quando o cansaço, a derrota ou o desânimo inevitáveis lhes machucarem a alma.

Ao ver o avião, como num filme de Spielberg, sombrear a Lua, levando-me a filha querida, o salgado das lágrimas se transformou em doçura de conforto com Kalil Gibran: como pai, não dando o mundo nem Lua aos filhos, me senti arqueiro e arco, arremessando a flecha viva em direcção ao mistério.

Ora, mesmo sendo avós, temos, sim e ainda, filhos a criar, pois família é uma tribo em construção permanente.

Pais envelhecem, filhos crescem, dão-nos netos e isso é a construção, o centro do mundo onde a obra da criação se renovam nunca completar-se-á.

De guerreiros que foram, pais se tornam pajés.

E mães, curandeiras de alma e de corpo.

É quando a tribo se fortalece com conselheiros, sábios que conhecem os mistérios da grande arquitetura familiar, com régua, esquadro, compasso e fio de prumo.

E com palmatória moral para ensinar o óbvio: se o dever premia, o erro cobra.


Escrevo, pois, de angústias, acho que angústias de pajé, de índio velho.

A nossa construção está ruindo, pois feita em areia movediça.

É minúsculo o mundo que pais querem dar aos filhos: o dos shoppings.

E não há mais crianças e adolescentes desejando a Lua como brinquedo ou como conquista.

Sem sonhos, os tetos são baixos e o infinito pode ser comprado em lojas.

Sem sonhos, não há necessidade de arqueiros arremessando flechas vivas.

Na construção familiar, temos erguido paredes.

Mas, dentro delas, haverá gente de verdade?”


Cecílio Elias Netto (escritor e jornalista)

Publicada em 01.08.2008. no 'Correio Popular' – Campinas, São Paulo

17 outubro 2011

Estações...

Estações de comboio perdidas… carris que vão dar ao infinito… plataformas de comboio mágicas…

Há tempos atravessei uma linha do comboio, daquelas perdidas no meio do nada… e apeteceu-me ficar parada a meio… a olhar para o túnel imaginário em que o comboio se sume no horizonte infinito…


Plataformas de comboio são sempre aquele mistério lindíssimo, repleto de simbolismo, e de mil e um inexplicáveis sentimentos…

Existem milhares de linhas de comboio, plataformas e carris... mas as linhas de comboio, as estações de comboio antigas, e os carris por onde o tempo passou são maravilhosos…

Tem um significado muito especial, uma dimensão simbólica de viajar e de distância muito fortes, que dificilmente se consegue explicar.

Permitem-nos sonhar e evadir para muito longe, para o infinito…

E a ideia de ficar a observar o comboio partir da plataforma... e desaparecer ao fundo, tornando-se num pontinho cada vez mais pequeno até que se extingue na paisagem... é aí que se reflecte realmente a ideia de partir de ir, para bem longe...


As estações de comboios têm em si aquele significado simbólico do amor... e essas sensações devem-se ao nosso imaginário remeter para épocas passadas e para todo o desenvolvimento das ligações ferroviárias que permitiram percursos mais distantes... mas também porque o comboio, desde sempre foi um dos primeiros, mais conhecidos e utilizados modos para emigrar.

Aquelas imagens inesquecíveis das pessoas dentro do comboio a acenarem “adeus” pelas janelinhas, às famílias e mulheres que iam ficando progressivamente mais longe e para trás na plataforma, à medida que o comboio ia avançando... Todas essas imagens têm uma carga simbólica muito forte, que nos transporta para o nosso imaginário longínquo…
E significam tudo aquilo da distância e da separação entre as pessoas... E ao contrário, também a chegada, a reunião, o encontro após tempos infinitos à espera do regresso de alguém que nos é querido...

Os comboios, as plataformas, os carris infinitos… têm uma forte carga simbólica e uma dimensão inexplicável das relações entre as pessoas...


Simbolizam a multidão, um lugar onde toda a gente passa, um lugar de todos e um lugar de ninguém... Mas também o lugar onde no meio de uma multidão imensa, sabemos que há aquela pessoa que para nós é importante. E no meio de tantas, só aquela importa, só aquela conta. Só aquela nos diz algo… como se todas as outras que ali estão nem sequer tivessem rosto...


Talvez este tipo de sentimento em relação aos comboios, às antigas locomotivas, e às estações de comboios seja estranho, misterioso e intrigante… mas felizmente ainda existem, perdidas por esse mundo fora, estações paradas no tempo…


Aquelas plataformas inconfundíveis, os pilares rebuscados, o relógio verde que o tempo não tirou as horas...

Tudo é igual a tanto tempo atrás... tudo é igual a como sempre foi…


Parece que o traçado das linhas de comboio foi feito para criar em nós uma nostalgia muito especial, uma memória translúcida de coisas antigas…

Viver a história dos comboios é viver os pedaços de tempo e de matérias de um saber raro: o das deslocações ocasionais, o das deslocações sem fronteira, sem imagens desaparecidas…


E faz-se de tudo no comboio: lê-se, dorme-se, fala-se com alguém.

Há sempre encontros com alguma coisa, com alguém, com a paisagem, com a tranquilidade.


E são sempre lugares de encontro, as estações ferroviárias são uma sala de visita de outras muitas aventuras que nos aguardam de cada vez que viajamos…


Se fecharmos os olhos conseguimos imaginar aqueles lugares apinhados de gente na plataforma e a subir para o comboio. Um frenesim de malas e despedidas, misturado com o apito de partida, o fumegar do carvão a sair da locomotiva, e a chegada dos acenos…


E agora abrimos os olhos… e vemos uma estação deserta, uma plataforma vazia, e carris nus ainda que vão dar a lado algum… E toda uma aura mágica, uma atmosfera de memórias perdidas de um simbolismo transcendente de um passado longínquo que agora jaz naquele lugar perdido no tempo…


E talvez seja por isso que esses lugares nos fazem evocar memórias passadas de tempos longínquos que nem sequer presenciámos. Mas que por alguma razão, parece que os sentimos na pele, como pertencentes ao nosso passado.

E se calhar pertencem…


“Na estação, sob a sua abóbada, comboios e pessoas estranhas reuniam-se como peregrinos.

Sempre pensara que as velhas estações de comboio e caminho-de-ferro eram um dos poucos lugares mágicos que restavam no mundo. Nelas se misturavam os fantasmas de recordações e despedidas como início de centenas de viagens para destinos distantes, sem regresso.

Se eu um dia me perder, procurem-se numa estação de comboios…”


13 outubro 2011

Parabéns a nós :)


Faz precisamente hoje um ano que eu e tu estivemos de Parabéns.

Cada um pelo seu motivo.

Este ano somos três.

Tu estás de Parabéns pela quarta vez. E nós dois estamos de Parabéns pela oitava vez este ano.

Apesar de ultimamente não ter vindo aqui escrever com regularidade, isso é apenas uma fase. Porque o que gera o que escrevo, tem-se mantido.

A reflexão, o pensamento e a interrogação são uma constante que pautam o meu dia-a-dia.

E pelos mais variados motivos.

Apenas nem sempre se materializam num pedaço de papel ou no teu formato digital de acesso global.

Tem estado a ser uma experiência muito gratificante esta forma de ser.

E já gerou recompensas, que foram agradável e surpreendentemente recebidas há poucos dias, mas que tomei apenas como um bom incentivo para a continuação deste profundo trabalho de descoberta pessoal, do que me rodeia, do mundo e do que há para além dele que não se consegue explicar nem traduzir em palavras.

Apenas se sente.

Tal como o carinho que tenho por ti.

Obrigada.

E mais uma vez Parabéns.

A nós.